7 de junho de 2013

Companhia


Em resposta ao primeiro desafio do Pena e Nanquim; Entre outras coisas, um conto de terror. Versão em inglês para o blog ainda está pendente.


Companhia

Por Regina Umezaki


-Abby, sai já daí!

Pelo menos de acordo com seus pais, Abigail era um nome bem forte, do tipo que, quando você vira adulto, ajuda a construir autoconfiança e força de vontade. No entanto, aos 7 anos de idade, ela o achava esquisito. Fora o fato de o nome soar... Velho.

Abby, no entanto, era um apelido bom. Charmosinho, como a menina que respondia ao chamado. Enfiada num vestido azul, com olhos grandes e redondos, cabelos pretos lustrosos e sapatos vermelhos brilhantes, ela parecia uma boneca. Meio palhaça e definitivamente aventureira, do tipo que se mete em encrencas; Ainda assim, uma boneca.

-Mas, mãe...! – ela prolongou o ‘ã’ durante todo o caminho entre o caixão e a mãe, que estava do outro lado do salão. 

Pegando a mão da criança, a mulher começou a andar em direção à porta. Elas estavam numa funerária, e o frio e a morbidez do mostruário de caixões causavam calafrios. Não era por menos; A mãe de Abby já tinha deixado claro para os parentes mais próximos que, se algo lhe acontecesse, ela fazia questão de ser cremada. A idéia de passar a eternidade dentro de uma... Caixa... Era simplesmente insuportável.

No entanto, o caixão que procuravam não era para ela; Era para seu sogro, o falecido avô de Abby. A menina já tinha chorado o que tinha para chorar, e em seu raciocínio complicado de criança, também se decidira a escolher o melhor caixão do mundo para tornar a morte menos deprimente... Para o morto. “É importante que ele fique confortável.”, tinha dito ao pai na noite anterior, enquanto se encolhia na cama para dormir.

Na verdade, Abby não sentia tanta falta do avô; Nos últimos dois dias, ela vinha se preocupando com outra coisa. Na mesma semana do falecimento do velho Senhor E., (apelido do ‘defunto’, uma palavra que ela tinha aprendido nos cinco minutos passados no mostruário) o padre amigo da família tinha deixado a cidade às pressas, abandonando uma congregação sem explicações. Logo em seguida, seus pais a tinham levado até o hospital para lidar com uma tal de burocracia (palavras do pai) para liberar o avô. Abby ainda tentava entender o que o avô podia ter feito de tão errado para ser preso depois de morrer.

Ela tinha visto o avô no hospital, por muito pouco tempo. Ele estava sendo levado numa cama de aço que parecia muito fria e desconfortável, coberto por um lençol. Alguém o estava levando para uma sala, mas teve que parar para atender a um chamado no auto-falante. Os pais tinham pedido que ela ficasse no corredor vazio esperando. Assim, tinham ficado ela e o morto, com o comprimento de um corredor entre eles. Abby só o tinha reconhecido porque ele estava com uma das mãos descobertas, e nela havia uma marquinha que ele costumava mostrar a ela quando era mais nova, enquanto contava uma história. Ela adorava histórias, principalmente aquela em que ele salvava um reino submerso e, na aventura, levava uma mordida feroz de um peixe-leão-dourado, que de acordo com o Senhor E. era um tipo de peixe que agora não existia mais (ele tinha acabado com o último, num combate muito emocionante, e tinha ganhado a marca na mão durante a briga).

No entanto, naquela tarde no hospital, a experiência de ver o avô foi traumatizante para Abby. Não porque ele estava morto, mas porque, quando ninguém além dela estava olhando, ele tinha se mexido.

 -Abby, - tinha dito o Senhor E., enquanto se erguia lentamente. – Dizem que eu vou para um lugar meio solitário. Você pode ir comigo? Eu não quero ficar sozinho...

Ela tinha começado a gritar, chorar e se encolher no canto da sala, e a mãe tinha vindo correndo para encontrá-la quase desmaiada. O Senhor E., como seria adequado, estava imóvel e bem falecido.

Por isso ela queria tanto escolher um caixão para o avô. Não para que ele ficasse confortável, como tinha dito ao pai, mas para que ele ficasse bem fechado e longe dela. Abby estava com medo. Sonhos com um monstro grande e feio arrastando-a num abraço frio para dentro de um caixão gelado e escuro a deixavam acordada à noite, e todos pensavam que era apenas um trauma por causa do primeiro contato com a morte, sem entender que na verdade o desespero se dava porque ela tinha medo de ser enterrada junto com o avô como ele tinha pedido, e de estar viva quando isso acontecesse.

A idéia era apavorante, e só de pensar ela começava a achar que as paredes estavam se arrastando mais para perto. Abby nunca tinha tido nada nem ao menos parecido com asma, no entanto, só de pensar no avô, ou na coisa que ele tinha se tornado, ela perdia a capacidade de respirar.

Agora, na funerária e de mãos dadas com a mãe, ela se sentia mais segura. Ali, ela podia escolher a jaula do monstro que a assombrava. Era dela a vantagem.

O problema era que o universo parecia querer amedrontá-la.

-Ainda não entendo porque nosso padre foi embora. – comentou a mãe. – Agora o enterro vai atrasar dois dias, até um novo padre chegar para poder rezar pela alma do Senhor E.

A notícia mandou um arrepio por toda a espinha de Abby, parou de caminhar de repente e apertou a mão da mãe com tanta força que chegou a doer.

-Mas, mãe!... A gente precisa enterrar o vovô! Se não ele... Ele...

“Ele vai vir me pegar, vai me arrastar da cama, me segurar dentro do caixão, e vai estar escuro e frio e silencioso e eu só vou escutar a voz dele e eu não vou conseguir sair porque a tampa daqueles caixões são tão pesadas e eu sou tão fraca e ninguém vai me ouvir do lado de fora e eu vou ser enterrada e eu não vou poder fazer nada só gritar e gritar e gritar e...”

O discurso ficou preso na garganta, num nó apertado demais. As lágrimas encheram os olhos, escorrendo no mais puro desespero. Abby soluçou.

-Ah, amor, não fica assim... – a mãe a abraçou e, apesar de já não fazê-lo há algum tempo, também pegou-a no colo. Abby continuou soluçando e tremendo.

Para ela, era tudo bem simples: “Aquilo” queria que ela fosse enterrada com “Aquilo”. Quanto mais tempo “Aquilo” passasse livre, mais tempo teria para planejar algo para pegá-la. Se a coisa fosse enterrada agora, ela escaparia; Se esperassem dois dias...

As duas saíram da funerária e a mãe de Abby colocou-a no chão. Novamente de mãos dadas, elas andaram até o carro. A viagem foi silenciosa. A mãe pensativa, Abby pesadora. Quando chegaram em casa já era noite.

Abby tomou um banho (sozinha, porque já era grande, e rápido, porque estava com medo do que poderia entrar pela janela ou vir pelo ralo para pegá-la). Vestiu seu pijama e deixou que a mãe secasse seus cabelos. Os barulhos do lado de fora a assustavam. Por um instante, ela desejou ser surda, depois, achou que talvez fosse melhor ouvir – lhe daria a chance de correr quando soubesse que algo vinha pegá-la.

A menina sentou-se na cama e chutou as cobertas para que a mãe a cobrisse.

-Mãe... – ela esticou o ‘ã’, como andava fazendo com freqüência. – Deixa a porta aberta?

A mãe de Abby fez que sim e beijou-a na testa. Ajeitou as cobertas e saiu do quarto, deixando a porta aberta para o corredor iluminado. Vendo a saída e a luz do lado de fora, a menina fechou os olhos com menos receio de dormir.

Mal pegou no sono, um ruído a acordou. Havia alguma coisa batendo na janela. Tec. Tec. Tec. De repente, um estalo mais alto. TEC. E outro. E mais um. Abby se encolheu, colocou a cabeça para dentro das cobertas, transformou-se numa bola encolhida de membros e medo. O vidro resistiu mais uma, duas, três batidas. Trincou. Ela começou a chorar, um choro profundo, com direito a gemidos de medo, tão encolhida que os joelhos tocavam os olhos fechados.

Novamente desejou ser surda. Que boba tinha sido, acreditando que teria a coragem necessária para sair das cobertas e correr para longe. O máximo que ela conseguia fazer por si mesma era se impedir de molhar as calças.

Num ruído que, aos ouvidos amedrontados da criança, pareceu um milhão de taças se partindo, ou um meteoro caindo, ou o mundo acabando, o vidro se partiu e algo quicou pelo chão. Uma corrente de ar bateu a porta. Ela gritou.

-Abby! ABBY! – era sua mãe do lado de fora, virando a maçaneta em falso. A porta estava emperrada e alguma coisa ia se arrastar pela janela quebrada a qualquer instante. Abby gritou pela mãe, pelo pai, até que as palavras se perderam no desespero e tudo o que ela fazia era chorar e se encolher.

Ela conseguia imaginar a coisa entrando, a coisa, não seu avô, não era mais um senhor simpático, era um monstro deformado, porque ela não conseguia conceber alguém que a tinha amado tanto vindo agora para pegá-la com os mesmos braços que a tinham ninado. Tinha que ser algo feio, frio, pegajoso e horrível.

A porta abriu. A mãe de Abby entrou correndo para ver a bola de tênis que tinha deixado o vidro em pedaços. Do outro lado da cerca que separava as casas, sua vizinha fazia sinal de “desculpas, me ligue, vamos resolver isso tudo depois”. Ela acenou de volta, respirando fundo para acalmar o coração. Foi até a cama da filha, que ainda gemia de medo. Um galho de árvore batia insistentemente no que sobrava na janela. Abby simplesmente chorava, e deu um grito agudo, do tipo que apenas crianças conseguem dar, quando sentiu a mão da mãe sob as cobertas, procurando-a para acalmá-la.

Abraçando a criança, que de início se debateu loucamente e depois agarrou-se a ela com uma força assustadora, a mãe afagou as costas de Abby até as duas adormecerem.

O resto da noite foi um borrão de sono intermitente, sobressaltos e calafrios. Conforme o dia raiava, Abby se acalmava. À luz do sol, as coisas pareciam menos assustadoras. ‘A Coisa’ parecia menos assustadora. Ainda assim, ela estava irrequieta enquanto trocava o pijama pelas roupas do enterro, e não melhorou no carro a caminho do cemitério.

Andando entre os túmulos, ela ouvia os sussurros ao seu redor. Pessoas, tantas pessoas, por todos os lados. Algumas lamúrias desesperadas, gemidos de desolação, soluços de dor. Ela não queria ouvir nada daquilo.

Exausta, Abby ficou ao lado dos pais e assistiu o caixão do avô ser colocado no túmulo. Com medo dos traumas que a filha podia estar desenvolvendo, eles tinham cobrado favores e conseguido um padre para realizar de uma vez os ritos de passagem do Senhor E. A menina olhou o caixão ser coberto de terra com olhos cansados e lábios comprimidos.

Não importava mais. Já não importava desde que ela pusera os pés no cemitério para ouvir os sussurros e as lágrimas. Abby sabia que ela tinha conseguido fugir, que nada viria pegá-la à noite, que tudo ficaria bem para ela.

Todas as outras fariam companhia ao seu avô; Sim, porque Abby agora sabia que havia outras. Ela as ouvia, enquanto passava com os pais pelas fileiras de túmulos e mais túmulos; Aquelas que soltavam as lamúrias, os gemidos e os soluços. Uma ou outra gritava.

As crianças que, ao contrário dela, não tinham conseguido escapar. Ela ouvia seus gritos, vindo da terra.

Abby ouvia todas elas.