Em resposta ao primeiro desafio do Pena e Nanquim; Entre outras coisas, um conto de terror. Versão em inglês para o blog ainda está pendente.
Companhia
Por Regina Umezaki
-Abby, sai já daí!
Pelo menos de acordo com seus
pais, Abigail era um nome bem forte, do tipo que, quando você vira adulto,
ajuda a construir autoconfiança e força de vontade. No entanto, aos 7 anos de
idade, ela o achava esquisito. Fora o fato de o nome soar... Velho.
Abby, no entanto, era um apelido
bom. Charmosinho, como a menina que respondia ao chamado. Enfiada num vestido
azul, com olhos grandes e redondos, cabelos pretos lustrosos e sapatos
vermelhos brilhantes, ela parecia uma boneca. Meio palhaça e definitivamente aventureira,
do tipo que se mete em encrencas; Ainda assim, uma boneca.
-Mas, mãe...! – ela prolongou o
‘ã’ durante todo o caminho entre o caixão e a mãe, que estava do outro lado do
salão.
Pegando a mão da criança, a
mulher começou a andar em direção à porta. Elas estavam numa funerária, e o
frio e a morbidez do mostruário de caixões causavam calafrios. Não era por
menos; A mãe de Abby já tinha deixado claro para os parentes mais próximos que,
se algo lhe acontecesse, ela fazia questão de ser cremada. A idéia de passar a
eternidade dentro de uma... Caixa... Era simplesmente insuportável.
No entanto, o caixão que procuravam
não era para ela; Era para seu sogro, o falecido avô de Abby. A menina já tinha
chorado o que tinha para chorar, e em seu raciocínio complicado de criança,
também se decidira a escolher o melhor caixão do mundo para tornar a morte
menos deprimente... Para o morto. “É importante que ele fique confortável.”,
tinha dito ao pai na noite anterior, enquanto se encolhia na cama para dormir.
Na verdade, Abby não sentia tanta
falta do avô; Nos últimos dois dias, ela vinha se preocupando com outra coisa.
Na mesma semana do falecimento do velho Senhor E., (apelido do ‘defunto’, uma palavra
que ela tinha aprendido nos cinco minutos passados no mostruário) o padre amigo
da família tinha deixado a cidade às pressas, abandonando uma congregação sem
explicações. Logo em seguida, seus pais a tinham levado até o hospital para
lidar com uma tal de burocracia (palavras do pai) para liberar o avô. Abby
ainda tentava entender o que o avô podia ter feito de tão errado para ser preso
depois de morrer.
Ela tinha visto o avô no
hospital, por muito pouco tempo. Ele estava sendo levado numa cama de aço que
parecia muito fria e desconfortável, coberto por um lençol. Alguém o estava
levando para uma sala, mas teve que parar para atender a um chamado no
auto-falante. Os pais tinham pedido que ela ficasse no corredor vazio
esperando. Assim, tinham ficado ela e o morto, com o comprimento de um corredor
entre eles. Abby só o tinha reconhecido porque ele estava com uma das mãos
descobertas, e nela havia uma marquinha que ele costumava mostrar a ela quando
era mais nova, enquanto contava uma história. Ela adorava histórias,
principalmente aquela em que ele salvava um reino submerso e, na aventura,
levava uma mordida feroz de um peixe-leão-dourado, que de acordo com o Senhor
E. era um tipo de peixe que agora não existia mais (ele tinha acabado com o
último, num combate muito emocionante, e tinha ganhado a marca na mão durante a
briga).
No entanto, naquela tarde no
hospital, a experiência de ver o avô foi traumatizante para Abby. Não porque
ele estava morto, mas porque, quando ninguém além dela estava olhando, ele
tinha se mexido.
-Abby, - tinha dito o Senhor E., enquanto se
erguia lentamente. – Dizem que eu vou para um lugar meio solitário. Você pode
ir comigo? Eu não quero ficar sozinho...
Ela tinha começado a gritar,
chorar e se encolher no canto da sala, e a mãe tinha vindo correndo para
encontrá-la quase desmaiada. O Senhor E., como seria adequado, estava imóvel e
bem falecido.
Por isso ela queria tanto
escolher um caixão para o avô. Não para que ele ficasse confortável, como tinha
dito ao pai, mas para que ele ficasse bem
fechado e longe dela. Abby estava com medo. Sonhos com um monstro grande e
feio arrastando-a num abraço frio para dentro de um caixão gelado e escuro a
deixavam acordada à noite, e todos pensavam que era apenas um trauma por causa
do primeiro contato com a morte, sem entender que na verdade o desespero se
dava porque ela tinha medo de ser enterrada junto com o avô como ele tinha
pedido, e de estar viva quando isso
acontecesse.
A idéia era apavorante, e só de
pensar ela começava a achar que as paredes estavam se arrastando mais para
perto. Abby nunca tinha tido nada nem ao menos parecido com asma, no entanto,
só de pensar no avô, ou na coisa que ele tinha se tornado, ela perdia a
capacidade de respirar.
Agora, na funerária e de mãos
dadas com a mãe, ela se sentia mais segura. Ali, ela podia escolher a jaula do
monstro que a assombrava. Era dela a vantagem.
O problema era que o universo
parecia querer amedrontá-la.
-Ainda não entendo porque nosso
padre foi embora. – comentou a mãe. – Agora o enterro vai atrasar dois dias,
até um novo padre chegar para poder rezar pela alma do Senhor E.
A notícia mandou um arrepio por
toda a espinha de Abby, parou de caminhar de repente e apertou a mão da mãe com
tanta força que chegou a doer.
-Mas, mãe!... A gente precisa
enterrar o vovô! Se não ele... Ele...
“Ele vai vir me pegar, vai me
arrastar da cama, me segurar dentro do caixão, e vai estar escuro e frio e
silencioso e eu só vou escutar a voz dele e eu não vou conseguir sair porque a
tampa daqueles caixões são tão pesadas e eu sou tão fraca e ninguém vai me
ouvir do lado de fora e eu vou ser enterrada e eu não vou poder fazer nada só
gritar e gritar e gritar e...”
O discurso ficou preso na
garganta, num nó apertado demais. As lágrimas encheram os olhos, escorrendo no
mais puro desespero. Abby soluçou.
-Ah, amor, não fica assim... – a
mãe a abraçou e, apesar de já não fazê-lo há algum tempo, também pegou-a no
colo. Abby continuou soluçando e tremendo.
Para ela, era tudo bem simples: “Aquilo”
queria que ela fosse enterrada com “Aquilo”. Quanto mais tempo “Aquilo”
passasse livre, mais tempo teria para planejar algo para pegá-la. Se a coisa
fosse enterrada agora, ela escaparia; Se esperassem dois dias...
As duas saíram da funerária e a
mãe de Abby colocou-a no chão. Novamente de mãos dadas, elas andaram até o carro.
A viagem foi silenciosa. A mãe pensativa, Abby pesadora. Quando chegaram em
casa já era noite.
Abby tomou um banho (sozinha,
porque já era grande, e rápido, porque estava com medo do que poderia entrar
pela janela ou vir pelo ralo para pegá-la). Vestiu seu pijama e deixou que a
mãe secasse seus cabelos. Os barulhos do lado de fora a assustavam. Por um
instante, ela desejou ser surda, depois, achou que talvez fosse melhor ouvir –
lhe daria a chance de correr quando soubesse que algo vinha pegá-la.
A menina sentou-se na cama e
chutou as cobertas para que a mãe a cobrisse.
-Mãe... – ela esticou o ‘ã’, como
andava fazendo com freqüência. – Deixa a porta aberta?
A mãe de Abby fez que sim e
beijou-a na testa. Ajeitou as cobertas e saiu do quarto, deixando a porta
aberta para o corredor iluminado. Vendo a saída e a luz do lado de fora, a
menina fechou os olhos com menos receio de dormir.
Mal pegou no sono, um ruído a
acordou. Havia alguma coisa batendo na janela. Tec. Tec. Tec. De repente, um
estalo mais alto. TEC. E outro. E mais um. Abby se encolheu, colocou a cabeça
para dentro das cobertas, transformou-se numa bola encolhida de membros e medo.
O vidro resistiu mais uma, duas, três batidas. Trincou. Ela começou a chorar,
um choro profundo, com direito a gemidos de medo, tão encolhida que os joelhos
tocavam os olhos fechados.
Novamente desejou ser surda. Que
boba tinha sido, acreditando que teria a coragem necessária para sair das
cobertas e correr para longe. O máximo que ela conseguia fazer por si mesma era
se impedir de molhar as calças.
Num ruído que, aos ouvidos
amedrontados da criança, pareceu um milhão de taças se partindo, ou um meteoro
caindo, ou o mundo acabando, o vidro se partiu e algo quicou pelo chão. Uma
corrente de ar bateu a porta. Ela gritou.
-Abby! ABBY! – era sua mãe do
lado de fora, virando a maçaneta em falso. A porta estava emperrada e alguma
coisa ia se arrastar pela janela quebrada a qualquer instante. Abby gritou pela
mãe, pelo pai, até que as palavras se perderam no desespero e tudo o que ela
fazia era chorar e se encolher.
Ela conseguia imaginar a coisa
entrando, a coisa, não seu avô, não era mais um senhor simpático, era um
monstro deformado, porque ela não conseguia conceber alguém que a tinha amado
tanto vindo agora para pegá-la com os mesmos braços que a tinham ninado. Tinha
que ser algo feio, frio, pegajoso e horrível.
A porta abriu. A mãe de Abby
entrou correndo para ver a bola de tênis que tinha deixado o vidro em pedaços.
Do outro lado da cerca que separava as casas, sua vizinha fazia sinal de “desculpas,
me ligue, vamos resolver isso tudo depois”. Ela acenou de volta, respirando
fundo para acalmar o coração. Foi até a cama da filha, que ainda gemia de medo.
Um galho de árvore batia insistentemente no que sobrava na janela. Abby
simplesmente chorava, e deu um grito agudo, do tipo que apenas crianças
conseguem dar, quando sentiu a mão da mãe sob as cobertas, procurando-a para
acalmá-la.
Abraçando a criança, que de
início se debateu loucamente e depois agarrou-se a ela com uma força
assustadora, a mãe afagou as costas de Abby até as duas adormecerem.
O resto da noite foi um borrão de
sono intermitente, sobressaltos e calafrios. Conforme o dia raiava, Abby se
acalmava. À luz do sol, as coisas pareciam menos assustadoras. ‘A Coisa’ parecia
menos assustadora. Ainda assim, ela estava irrequieta enquanto trocava o pijama
pelas roupas do enterro, e não melhorou no carro a caminho do cemitério.
Andando entre os túmulos, ela
ouvia os sussurros ao seu redor. Pessoas, tantas pessoas, por todos os lados.
Algumas lamúrias desesperadas, gemidos de desolação, soluços de dor. Ela não
queria ouvir nada daquilo.
Exausta, Abby ficou ao lado dos
pais e assistiu o caixão do avô ser colocado no túmulo. Com medo dos traumas
que a filha podia estar desenvolvendo, eles tinham cobrado favores e conseguido
um padre para realizar de uma vez os ritos de passagem do Senhor E. A menina
olhou o caixão ser coberto de terra com olhos cansados e lábios comprimidos.
Não importava mais. Já não
importava desde que ela pusera os pés no cemitério para ouvir os sussurros e as
lágrimas. Abby sabia que ela tinha conseguido fugir, que nada viria pegá-la à
noite, que tudo ficaria bem para ela.
Todas as outras fariam companhia
ao seu avô; Sim, porque Abby agora sabia que havia outras. Ela as ouvia,
enquanto passava com os pais pelas fileiras de túmulos e mais túmulos; Aquelas
que soltavam as lamúrias, os gemidos e os soluços. Uma ou outra gritava.
As crianças que, ao contrário
dela, não tinham conseguido escapar. Ela ouvia seus gritos, vindo da terra.
Abby ouvia todas elas.